28.10.2007, José Vítor Malheiros
Ela diz que tem os pés em dois mundos. Um pé no campo, no mundo das mulheres africanas, que trabalham duramente e sem descanso na terra da Libéria, e outro no mundo dos profissionais cosmopolitas, para quem os Estados Unidos são uma segunda pátria. E Ellen Johnson-Sirleaf conhece de facto bem estes dois mundos.Nos dias 8 e 9 de Dezembro, quando tiver lugar em Portugal a anunciada cimeira União Europeia-África, Ellen Johnson--Sirleaf deverá ser uma das participantes e cabe-lhe uma honra singular, que ela ostenta com a maior simplicidade: a de ser a primeira mulher eleita democraticamente a ocupar a Presidência de um país africano.Ellen Johnson-Sirleaf é Presidente da Libéria desde Janeiro do ano passado, depois de uma eleição (contra o antigo futebolista George Weah, estrela do AC Milan) onde arrebatou quase 60 por cento dos votos. Johnson-Sirleaf encontrou--se assim à frente de um país destruído por duas décadas de guerras civis e por uma sucessão de ditaduras marcadas pela violência étnica e pela corrupção.Ellen Johnson (tornou-se Sirleaf pelo casamento, aos 17 anos) nasceu em Monróvia, capital da Libéria, onde fez os seus estudos secundários. Em 1961, partiu com o marido para os Estados Unidos para estudar Contabilidade em Madison (Wisconsin). O destino era óbvio, pois a Libéria sempre manteve com os Estados Unidos laços particularmente estreitos. O país, que nunca foi uma colónia, foi fundado em 1847 por escravos libertos americanos. A sua capital, Monróvia, foi assim baptizada em homenagem a James Monroe, quinto Presidente americano.Nos EUA, Johnson-Sirleaf trabalhou como empregada de mesa para custear os estudos, que prosseguiu com um master em Administração Pública em Harvard.Regressou à Libéria em 1972 para participar no Governo de William Tolbert como ministra adjunta das Finanças. Quando Tolbert foi derrubado (e morto) num golpe de Estado dirigido por Samuel Doe, Johnson-Sirleaf conheceu o seu primeiro exílio, no Quénia, onde trabalhou para o Citibank. Regressou em 1985 mas a sua oposição a Doe valeu--lhe duas prisões - uma delas com uma condenação a dez anos de cadeia e uma ameaça de execução. Só cumpriu um ano de prisão, tendo a pena sido transformada em novo exílio, desta vez nos EUA, onde trabalhou para o Banco Mundial. De 1992 a 1997 dirigiu o gabinete regional de África do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Em 1997 regressou para concorrer às eleições (contra Charles Taylor), após o que teve de fugir de novo, acusada de traição por Taylor, que lançaria o país numa violenta guerra civil que provocou centenas de milhares de mortos. Johnson-Sirleaf regressou em 2003, após a queda de Taylor (hoje a ser julgado num tribunal internacional), para dirigir a Comissão de Boa Governação, cuja missão consistiu em preparar as eleições democráticas e em dar início a um combate contra a corrupção endémica. Depois, seguiu-se a eleição presidencial e a tomada de posse, à qual veio assistir a mulher do Presidente americano, Laura Bush, e a secretária de Estado, Condoleezza Rice - num sinal de apoio de Washington.Ellen Johnson-Sirleaf tem entre os seus antepassados os antigos escravos americanos que fundaram a Libéria - o que faz dela parte da casta de elite do país, os américo-liberianos, um grupo que representa três a cinco por cento da população - mas não gosta que refiram esse facto, que lhe parece alimentar as divisões étnicas que dividem o país. "Se essa classe existiu, já foi apagada ao longo dos anos, através de casamentos e da integração social", diz.A sua determinação e a sua guerra sem tréguas contra a corrupção - que é, ainda hoje, a par da educação, a sua grande batalha - valeu-lhe o epíteto de "Dama de Ferro", mas a sua pose não tem nada a ver com Thatcher. A luta contra a corrupção é essencial para a atracção de capital e de meios técnicos que a Libéria não possui - apesar dos seus ricos recursos em diamantes, madeira e borracha.Quando tomou posse, as suas prioridades eram "garantir a paz e curar as feridas da guerra", mas Johnson-Sirleaf sabe que só a batalha do desenvolvimento pode garantir a paz de forma duradoura. Hoje, a segurança ainda é assegurada em muitas regiões do país por 15.000 capacetes azuis da ONU.O jornalista e escritor americano Jon Lee Anderson publicou no The New Yorker em Março do ano passado um impressionante artigo sobre o estado do país (onde ele próprio viveu quando criança), onde se passeia literalmente pelas ruínas de Monróvia. Aí, uma diplomata da embaixada americana descreve o país em duas pinceladas: "É um Estado falhado. Não há nenhum sector do país que não esteja em ruínas".O país, com os seus três milhões de habitantes, não possui praticamente infra--estruturas, as telecomunicações, a distribuição de água, os esgotos são quase inexistentes, as estradas rudimentares. A esperança de vida é de 40 anos. Uma em cada cinco crianças não chega aos cinco anos de vida - a maior parte vítimas de doenças tão evitáveis como a diarreia ou o sarampo. Três quartos da população vive com menos de um dólar por dia e a taxa de desemprego é de 80 por cento. A tuberculose e a sida são generalizadas. O país está, para mais, estrangulado por uma dívida de 3200 milhões de dólares (800 milhões ao FMI!) que a Presidente tenta cancelar através de acordos bilaterais.A revista Forbes incluiu este ano Johnson-Sirleaf na lista das 100 mulheres mais poderosas do mundo, mas a escolha não pode ter deixado de a fazer sorrir. Respeitada, sem dúvida. Corajosa, também. E com um forte sentimento de dever para com o seu país e estas mulheres camponesas e sem poder, sobre quem recaem todas as responsabilidades e todas as violências. Mas poder é o que falta a esta mãe de quatro filhos e avó de seis netos que faz amanhã 69 anos e que tem o simples desejo de garantir a todas as crianças do seu país o luxo de uma escola.Na cimeira UE-África, o que acontecer com a Libéria será um indicador. Não porque a Europa se deva comportar de forma diferente perante um Estado governado por uma mulher. Mas porque se trata de um pequeno país que enveredou pela democracia e pelo combate à corrupção depois de uma geração de violência étnica e de pilhagem. O tipo de evolução que a política externa da UE deve, por todas as razões, apoiar de forma evidente.
Ela diz que tem os pés em dois mundos. Um pé no campo, no mundo das mulheres africanas, que trabalham duramente e sem descanso na terra da Libéria, e outro no mundo dos profissionais cosmopolitas, para quem os Estados Unidos são uma segunda pátria. E Ellen Johnson-Sirleaf conhece de facto bem estes dois mundos.Nos dias 8 e 9 de Dezembro, quando tiver lugar em Portugal a anunciada cimeira União Europeia-África, Ellen Johnson--Sirleaf deverá ser uma das participantes e cabe-lhe uma honra singular, que ela ostenta com a maior simplicidade: a de ser a primeira mulher eleita democraticamente a ocupar a Presidência de um país africano.Ellen Johnson-Sirleaf é Presidente da Libéria desde Janeiro do ano passado, depois de uma eleição (contra o antigo futebolista George Weah, estrela do AC Milan) onde arrebatou quase 60 por cento dos votos. Johnson-Sirleaf encontrou--se assim à frente de um país destruído por duas décadas de guerras civis e por uma sucessão de ditaduras marcadas pela violência étnica e pela corrupção.Ellen Johnson (tornou-se Sirleaf pelo casamento, aos 17 anos) nasceu em Monróvia, capital da Libéria, onde fez os seus estudos secundários. Em 1961, partiu com o marido para os Estados Unidos para estudar Contabilidade em Madison (Wisconsin). O destino era óbvio, pois a Libéria sempre manteve com os Estados Unidos laços particularmente estreitos. O país, que nunca foi uma colónia, foi fundado em 1847 por escravos libertos americanos. A sua capital, Monróvia, foi assim baptizada em homenagem a James Monroe, quinto Presidente americano.Nos EUA, Johnson-Sirleaf trabalhou como empregada de mesa para custear os estudos, que prosseguiu com um master em Administração Pública em Harvard.Regressou à Libéria em 1972 para participar no Governo de William Tolbert como ministra adjunta das Finanças. Quando Tolbert foi derrubado (e morto) num golpe de Estado dirigido por Samuel Doe, Johnson-Sirleaf conheceu o seu primeiro exílio, no Quénia, onde trabalhou para o Citibank. Regressou em 1985 mas a sua oposição a Doe valeu--lhe duas prisões - uma delas com uma condenação a dez anos de cadeia e uma ameaça de execução. Só cumpriu um ano de prisão, tendo a pena sido transformada em novo exílio, desta vez nos EUA, onde trabalhou para o Banco Mundial. De 1992 a 1997 dirigiu o gabinete regional de África do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Em 1997 regressou para concorrer às eleições (contra Charles Taylor), após o que teve de fugir de novo, acusada de traição por Taylor, que lançaria o país numa violenta guerra civil que provocou centenas de milhares de mortos. Johnson-Sirleaf regressou em 2003, após a queda de Taylor (hoje a ser julgado num tribunal internacional), para dirigir a Comissão de Boa Governação, cuja missão consistiu em preparar as eleições democráticas e em dar início a um combate contra a corrupção endémica. Depois, seguiu-se a eleição presidencial e a tomada de posse, à qual veio assistir a mulher do Presidente americano, Laura Bush, e a secretária de Estado, Condoleezza Rice - num sinal de apoio de Washington.Ellen Johnson-Sirleaf tem entre os seus antepassados os antigos escravos americanos que fundaram a Libéria - o que faz dela parte da casta de elite do país, os américo-liberianos, um grupo que representa três a cinco por cento da população - mas não gosta que refiram esse facto, que lhe parece alimentar as divisões étnicas que dividem o país. "Se essa classe existiu, já foi apagada ao longo dos anos, através de casamentos e da integração social", diz.A sua determinação e a sua guerra sem tréguas contra a corrupção - que é, ainda hoje, a par da educação, a sua grande batalha - valeu-lhe o epíteto de "Dama de Ferro", mas a sua pose não tem nada a ver com Thatcher. A luta contra a corrupção é essencial para a atracção de capital e de meios técnicos que a Libéria não possui - apesar dos seus ricos recursos em diamantes, madeira e borracha.Quando tomou posse, as suas prioridades eram "garantir a paz e curar as feridas da guerra", mas Johnson-Sirleaf sabe que só a batalha do desenvolvimento pode garantir a paz de forma duradoura. Hoje, a segurança ainda é assegurada em muitas regiões do país por 15.000 capacetes azuis da ONU.O jornalista e escritor americano Jon Lee Anderson publicou no The New Yorker em Março do ano passado um impressionante artigo sobre o estado do país (onde ele próprio viveu quando criança), onde se passeia literalmente pelas ruínas de Monróvia. Aí, uma diplomata da embaixada americana descreve o país em duas pinceladas: "É um Estado falhado. Não há nenhum sector do país que não esteja em ruínas".O país, com os seus três milhões de habitantes, não possui praticamente infra--estruturas, as telecomunicações, a distribuição de água, os esgotos são quase inexistentes, as estradas rudimentares. A esperança de vida é de 40 anos. Uma em cada cinco crianças não chega aos cinco anos de vida - a maior parte vítimas de doenças tão evitáveis como a diarreia ou o sarampo. Três quartos da população vive com menos de um dólar por dia e a taxa de desemprego é de 80 por cento. A tuberculose e a sida são generalizadas. O país está, para mais, estrangulado por uma dívida de 3200 milhões de dólares (800 milhões ao FMI!) que a Presidente tenta cancelar através de acordos bilaterais.A revista Forbes incluiu este ano Johnson-Sirleaf na lista das 100 mulheres mais poderosas do mundo, mas a escolha não pode ter deixado de a fazer sorrir. Respeitada, sem dúvida. Corajosa, também. E com um forte sentimento de dever para com o seu país e estas mulheres camponesas e sem poder, sobre quem recaem todas as responsabilidades e todas as violências. Mas poder é o que falta a esta mãe de quatro filhos e avó de seis netos que faz amanhã 69 anos e que tem o simples desejo de garantir a todas as crianças do seu país o luxo de uma escola.Na cimeira UE-África, o que acontecer com a Libéria será um indicador. Não porque a Europa se deva comportar de forma diferente perante um Estado governado por uma mulher. Mas porque se trata de um pequeno país que enveredou pela democracia e pelo combate à corrupção depois de uma geração de violência étnica e de pilhagem. O tipo de evolução que a política externa da UE deve, por todas as razões, apoiar de forma evidente.
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